Desde o último trimestre de 2024, o setor sucroalcooleiro brasileiro vem enfrentando uma nova e intensa onda de pedidos de recuperação judicial e falências. Em meio a um cenário macroeconômico desafiador, marcado por juros elevados, crédito restrito, volatilidade nas commodities e adversidades climáticas, mais de 100 usinas encontram-se atualmente em situação de colapso financeiro — o que representa cerca de 24% das 446 usinas em operação no país, segundo levantamento da RPA Consultoria.
Ao todo, são 79 usinas em recuperação judicial, das quais 32 estão com as atividades paralisadas, e outras 28 já tiveram a falência decretada, a maioria sem operação. Essa realidade, que desafia a lógica da pujança do agronegócio brasileiro, evidencia uma fragilidade estrutural acumulada ao longo dos anos — desde os incentivos mal calibrados no início de 2010 até a intervenção estatal nos preços dos combustíveis e a sequência de safras prejudicadas por secas severas.
Enquanto isso, do lado dos credores, o retrato não é menos preocupante: os processos se arrastam por anos, consumindo tempo e recursos, sem perspectiva concreta de ressarcimento. Em muitos casos, os pedidos de recuperação judicial acabam por servir, intencionalmente ou não, como anteparo para práticas que visam blindar patrimônio e esvaziar garantias antes do colapso formal da empresa.
É nesse contexto que a investigação patrimonial surge como uma ferramenta estratégica — não apenas para subsidiar medidas jurídicas, mas para identificar indícios de fraudes e movimentações suspeitas que tenham ocorrido como preparação para o ajuizamento da recuperação judicial ou da falência.
Blindagens patrimoniais antes da quebra: um padrão?
A experiência comum dos escritórios de advocacia que estão atuando pelos credores nas assembleias gerais organizadas mostram que, em muitos casos, as empresas devedoras já iniciaram um processo de desmobilização e dispersão patrimonial anos antes do colapso. São operações como:
- Transferência de imóveis e ativos valiosos para parentes ou pessoas interpostas (“laranjas”);
- Constituição de holdings patrimoniais em jurisdições de baixa transparência;
- Realização de operações com empresas vinculadas sem justificativa econômica clara;
- Remessas de recursos à criação de offshores com origem pouco rastreável.
Essas práticas, ainda que nem sempre ilícitas à primeira vista, podem configurar abuso de direito cometido contra credores da RJ, especialmente quando realizadas em série, com o objetivo de inviabilizar a recuperação dos ativos via execução judicial.
Um exemplo emblemático de fraude contra credores
Em um caso recente conduzido pela Protiviti (identidade preservada por confidencialidade), um grupo sucroalcooleiro, às vésperas do pedido de recuperação judicial, transferiu grande parte do seu patrimônio líquido — incluindo terras agrícolas de alto valor — para uma nova empresa criada em nome de dois ex-funcionários. Paralelamente, realizou contratos de “consultoria” com uma offshore recém-constituída em Curaçao, por valores incompatíveis com os serviços declarados.
Notou-se ainda que parte dos valores pagos à offshore retornavam ao país por meio de contas de pessoas interpostas, inclusive familiares de antigos diretores do grupo, indicando um esquema de lavagem de dinheiro e blindagem patrimonial. Além disso, todos os contratos mantidos pela usina com fazendas arrendadas no seu entorno foram renegociados para que esta nova empresa criada figurasse como arrendatária das terras e ainda mantivesse a safra para ser colhida sob sua propriedade, com o objetivo de gerar receita fora do alcance dos credores.
Ao transferir os contratos de arrendamento para a nova empresa e garantir que ela recebesse a safra, os envolvidos garantiram fluxo de caixa futuro desvinculado da empresa endividada, blindando parte relevante do faturamento que poderia ser usado para pagar dívidas.
A investigação patrimonial permitiu o mapeamento da teia societária envolvida, a identificação dos beneficiários finais e a produção de provas que embasaram um pedido judicial de indisponibilidade de bens e a instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ). Com base nesse material, o Judiciário autorizou o bloqueio de R$ 48 milhões em bens e a reversão de algumas transferências, permitindo aos credores retomarem parte dos valores.
A importância de agir antes que o rastro desapareça
O êxito em casos como esse depende fortemente do tempo de resposta. A coleta de provas e o rastreamento de ativos são significativamente mais eficazes quando realizados logo após os primeiros sinais de deterioração financeira — e antes que o processo judicial limite as possibilidades de investigação ou os ativos estejam irreversivelmente dissipados.
Além disso, uma apuração técnica e precisa pode apoiar advogados e administradores judiciais na construção de teses robustas para o reconhecimento de fraudes, bloqueio de bens, quebra de sigilo e responsabilização de terceiros. Cada vez mais, a recuperação de crédito em cenários complexos exige uma combinação de conhecimento jurídico com inteligência investigativa, uso de tecnologia e expertise forense.
Investigação como parte da estratégia de recuperação
Para credores, fundos de investimento, escritórios de advocacia e administradores judiciais, o uso de investigações patrimoniais especializadas deixou de ser uma etapa acessória e passou a integrar o núcleo das estratégias de recuperação. Quando bem conduzida, essa análise revela ativos ocultos, estruturas societárias complexas e movimentações suspeitas que, de outra forma, permaneceriam fora do radar.
Mais do que oferecer visibilidade sobre o real cenário patrimonial dos devedores, a investigação permite calibrar expectativas, evitar litígios improdutivos e, sobretudo, identificar caminhos viáveis para reaver valores.
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Por Paulo Rodrigo Barreto, Consutor Master de Forensics & Integrity e especialista em Investigação de Ativos da Protiviti Brasil.